Uma das expressões mais utilizadas recentemente na discussão económica é “ajustamento”. Compreensivelmente, para muitos (principalmente não economistas, mas também alguns economistas), a expressão gerou alguma confusão. Para alguns tornou-se sinónimo de austeridade ou um eufemismo para desemprego e recessão. A maior parte nunca chegou a perceber o que é o ajustamento, porque é que é necessário, e porque causa efeitos negativos no curto prazo. Para ajudar a entender o que é exactamente um ajustamento económico, recorro neste post a um exemplo simples (um pedido de desculpas antecipado aos leitores com maior sofisticação nesta área do conhecimento).
Momento 1: a necessidade do ajustamento
Imaginemos uma empresa de produção de sapatos, em cuja fábrica cada trabalhador produz um par de sapatos por hora. Os gestores da empresa apercebem-se de que com este nível de produtividade não sobreviverão muito tempo. Não só a produtividade é baixa como a fábrica oferece poucas perspectivas de permitir que a produtividade dos trabalhadores aumente. Resolvem então transferir os trabalhadores para uma nova fábrica, onde conseguirão produzir 2 pares de sapatos por hora. A decisão de fazer a transferência parece óbvia: a empresa que actualmente produz 50 pares de sapatos por hora, passará a produzir 100 pares de sapatos, podendo pagar mais aos trabalhadores e accionistas.
Esta transferência é o equivalente ao ajustamento económico da economia, ou seja, a passagem de recursos (trabalhadores, capital, conhecimento) de áreas com fraca produtividade para áreas de maior valor acrescentado. Em Portugal isso corresponde a transferir recursos da função pública, de obras públicas como estádios e SCUTS para a indústria exportadora.
Momento 2: A queda do produto e do emprego
Pese embora a necessidade evidente de fazer o ajustamento, os gestores da empresa cedo se apercebem que esse ajustamento não vem sem custos. As duas fábricas são distantes uma da outra e enquanto os trabalhadores se deslocam de uma fábrica para outra não estão a produzir em nenhuma. De facto, o príncípio do ajustamento é marcado por uma queda de produção e do número de trabalhadores activos.
Na economia real, este percurso entre as duas fábricas corresponde ao tempo e esforço necessário para transferir recursos de um sector para outro. Muitas vezes a transferência de recursos não é fácil (difícil transformar restaurantes em fábricas de chips) ou não existem incentivos para tal (pessoas com direito a longos períodos de subsídio de desemprego não sentem a pressão para procurar novo emprego)
Momento 3: O pico da crise
Quando a transferência de trabalhadores (o ajustamento) se encontra naquele momento em que já muitos trabalhadores percorrrem o caminho entre as duas fábricas, mas nenhum ainda chegou à segunda fábrica, a produção e o número de trabalhadores activos atinge o fundo. Um gestor menos experiente, ou menos inteligente, poderia pensar nesta altura que a decisão de transferir trabalhadores foi um erro, tal o efeito negativo que, até àquele momento, teve no emprego e na produção.
Em política, este é o momento em que as vozes anti-ajustamento mais se fazem sentir. O facto de o produto e o emprego terem caído desde o início do ajustamento parece provar o seu argumento de que o ajustamento (a austeridade) não está a funcionar.
Momento 4: os primeiros frutos
Quando os primeiros trabalhadores começam a chegar à segunda fábrica, a produção começa a subir novamente. O número de trabalhadores activos mantém-se semelhante, já que continuam a sair trabalhadores da primeira fábrica, mas os ganhos na produção começam a verificar-se à medida que os primeiros trabalhadores a sair da antiga fábrica chegam à nova.
Na economia real, este é um fenómeno comum nos ajustamentos: primeiro cresce o produto e só depois o emprego. É normalmente nesta altura que os políticos mais à esquerda se queixam de que, apesar da economia estar a crescer, esse crescimento não resulta em criação de emprego
Momento 5: as eleições
Apesar de o produto ter começado a aumentar, os gestores são chamados pelos accionistas da empresa, surpreendido por estarem tantos trabalhadores inactivos. Os gestores explicam que existam muitos trabalhadores inactivos devido à transferência entre fábricas. Os accionistas, que percebem pouco do negócio, pedem aos gestores que parem a transferência, afinal “é um desperdícios ter trabalhadores a caminhar quando podem estar na fábrica antiga a produzir”, caso contrário procurarão outros gestores. Os gestores fazem a vontade aos accionistas.
Na economia real, esta é a altura em que os políticos receiam o efeito que o desemprego causado pelo ajustamento pode ter no seu sucesso eleitoral, preferindo interromper as medidas de ajustamento económico. No caso português, esta travagem aconteceu também devido à intervenção do Tribunal Constitucional
Momento 6: o “sucesso” depois da travagem
Após a paragem da transferência de trabalhadores, a produção aumenta como nunca antes. Tal acontece porque deixa de haver trabalhadores a abandonar a velha fábrica, mas os trabalhadores que já iam a caminho continuam a chegar à nova fábrica. Da mesma forma, o número de trabalhadores activos aumenta. Os accionistas vêem nesta evolução a confirmação da sua tese de que foi boa ideia parar a transferência de trabalhadores. Alguns gestores menos experientes ficarão também a pensar que, de facto, parar a transferência foi uma boa ideia.
Com as devidas limitações no paralelo, esta é uma situação semelhante ao que iremos presenciar em Portugal em 2014 (e parcialmente já assitimos em 2013). O ajustamento realizado em 2011-2012 continua a dar resultados, e a travagem do ajustamento imposta pelo tribunal constitucional em 2013 poupa o país às dores de curto prazo. Com o ajustamento de 2011-12 a dar frutos e sem as dores de um ajustamento actual, a economia e o emprego recuperarão. Alguns vêem nesta situação a prova de que o ajustamento nunca deveria ter sido feito. Erradamente.
Momento 7: o fim do ajustamento
Quando todos os trabalhadores que já se encontravam a caminho da sua fábrica lá chegam, os benefícios da transferência esgotam-se. O aumento de produção pára nos 70 sapatos por hora, longe dos 100 sapatos por hora que teriam sido atingidos se o ajustamento não tivesse sido travado. Em breve, 70 sapatos por hora não serão suficientes e uma nova transferência de trabalhadores será necessária, com o consequente aumento de desemprego e queda na produção.